Lançada em 2017 e sucesso no Brasil em 2018, a série The Good Doctor
mostra a história de Shaun Murphy, um residente de medicina portador do
Transtorno do Espectro Autista (TEA), que sonha em se tornar um grande
cirurgião e tem que lidar tanto com as suas dificuldades da síndrome
quanto com o preconceito das pessoas em relação à sua escolha
profissional.
Em Cuiabá, Enã Rezende Bispo do Nascimento, 26 anos,
vive essa ficção na vida real. Diagnosticado com TEA aos 18 anos,
apesar de ter vivido com a síndrome a vida toda, Enã escolheu aos 10
anos que seria neurocirurgião. Estudou, batalhou e em janeiro se formará
em medicina pela Universidade de Cuiabá (Unic).
O grau de autismo
de Enã é leve, mas ele possui alguns dos sintomas característicos do
espectro, como o hiperfoco, a tendência a ficar mexendo as mãos, a
hipersensibilidade sonora, tátil e às vezes fotossensibilidade, em que
ambientes com muita luz o incomodam. Boates, por exemplo, em que há
muitas pessoas, luzes e barulho, são locais difíceis para ele.
A descoberta
Na infância, Enã foi diagnosticado de forma errônea com psicose
infantil. Quando pequeno, ele contou ter sofrido muito preconceito por
parte das outras crianças e até dos pais delas. Além do autismo, à época
não diagnosticado, ele também tinha desvaria, um distúrbio na fala que
dificultava a pronúncia de algumas palavras.
“Na infância eu sofri
muito. As crianças viam que eu era diferente, que eu era uma criança
introspectiva, mas que tentava conversar, se aproximar. E eu tinha
dislalia, não conseguia falar o ‘r’ vibrado, fazer o trator com a
língua. Aí as crianças me achavam esquisito, falavam que eu era louco,
retardado, deficiente e, às vezes, até os pais não me ajudavam, muito
pelo contrário, falavam para os filhos: ‘fica longe daquele louco’”,
lembrou.
Mas engana-se quem pensa que o bullying atrapalhou Enã. Segundo ele, as dificuldades somente o impulsionaram a se superar.
“Eu
vi que eu tinha que me superar, que eu tinha que provar para todo mundo
que eles estavam errados de pensar isso de mim. Eu percebi que só
dependia de mim, que eu tinha que correr atrás, que tinha que tentar ser
alguém. Foi uma superação, foi muito difícil. Até na época do cursinho
muita gente tentou me desmotivar a fazer medicina”, contou.
O
estudante disse que o lugar em que foi melhor acolhido foi a igreja –
ele frequenta a primeira igreja Batista de Cuiabá. O pai era pastor, os
avós também eram muito evangélicos, e, por isso, ele frequentou a igreja
desde pequeno.
“É uma sensação tão boa, é um amor. Eu tenho um
pouco de sensibilidade para essas coisas e consigo sentir a aceitação.
Tanto que o barulho me incomoda, mas, estranhamente, os louvores da
igreja não me incomodam. As orações, Deus na minha vida, tem sido
fundamental para mim”, relatou.
O diagnóstico correto, de Transtorno do Espectro Autista, veio somente
aos 18 anos, e foi recebido por Enã com uma mistura de alegria – por
finalmente entender várias características de si mesmo – e tristeza –
por perceber que tinha uma condição neurológica sem cura.
Medicina
A escolha da medicina veio cedo. Aos 10 anos Enã já sabia o que
queria ser quando crescer. Quando ele tinha sete anos, seu pai morreu de
traumatismo craniano, ao sofrer um acidente automobilístico, o que
despertou sua vocação.
“Não sei bem se foi isso, mas foi uma das
coisas que me direcionou. Porque eu adquiri muita curiosidade sobre como
que ficou a cabeça dele”, afirmou. Enã queria entender o que houve e
poder ajudar situações como a do pai. Ele acredita que o acontecimento
ficou em sua cabeça e, depois de três anos, despertou a ideia de fazer
medicina e se tornar um neurocirurgião.
Nascido em Umuarama (PR), foi depois da morte do pai que Enã veio
para Mato Grosso, para ficar próximo da família da mãe, que é de
Rondonópolis. Veio para Cuiabá cursar o 3º ano do ensino médio, fez
cursinho em Goiânia (GO) e retornou para a Capital mato-grossense quando
passou em medicina.
Começar o curso não foi fácil. A princípio, o
estudante teve muitas dificuldades. Segundo ele, as pessoas não o
entendiam, nem tinham paciência, mas com o tempo e a convivência, se
acostumaram com as diferenças e o aceitaram.
Para colaborar com a
aceitação, Enã precisou mudar sua socialização, até mesmo pensando na
relação médico e paciente. Antes de entrar para a medicina, quando ainda
estava no cursinho, em 2009, o estudante comprou livros de linguagem
corporal para conseguir melhorar sua forma de lidar com os próximos e
passou a estudar.
“Esses livros davam estratégias de socialização.
Uma coisa que eu aprendi a fazer foi conversar olhando nos olhos das
pessoas, que passa mais tranquilidade e confiança. Os livros dão uma
série de dicas para você fazer o triângulo social, olhar nos olhos,
olhar na boca, porque se você ficar o tempo todo só olhando nos olhos
também não é legal”, disse.
Segundo Enã, atualmente, a maioria dos
pacientes nem mesmo percebem que ele tem Transtorno do Espectro
Autista. No começo ele tinha um pouco mais de dificuldade em falar com
eles, mas, como começou a interagir com pacientes no 2º ano da
faculdade, eles achavam que era nervosismo pela falta de experiência.
Faltando poucos meses para a colação de grau, Enã já está se
preparando para as provas de residência. Ele pretende tentar a do
Sistema Único de Saúde (SUS) de São Paulo, a do AMRIGS, que atende a
hospitais do Rio Grande do Sul, e, em Cuiabá, do Hospital Geral
Universitário (HGU) e do Santa Rosa, os dois hospitais da Capital
mato-grossense que tem neurocirurgia.
Depois dos dois anos da residência, ele ainda enfrentará mais cinco anos de especialização em neurocirurgia.
The Good Doctor
Enã começou a assistir a série e acabou de terminar a primeira
temporada. Desde que The Good Doctor ficou conhecida no Brasil, ele
disse que muitas pessoas têm lhe comparado ao doutor Murphy. Aliás, até
mesmo ele diz se reconhecer em muitos detalhes da série.
“Algumas
coisas eu me vejo. O hiper foco, o fato de a gente não entender a
linguagem conotativa, levar tudo mais para o literal, inclusive isso foi
e é uma dificuldade minha, em relação a certas piadas”, contou.
Porém,
diferente do Shaun, que não gosta de ser tocado, Enã gosta muito de
abraçar. Ele afirmou que com algumas pessoas se importa em ser tocado e
com outras não, mas que não sabe explicar como funciona a seletividade.
Enã, a mãe e o padastro, em seu ensaio de formatura
Na série, o personagem também tem a Síndrome de Savant, em que ele
grava tudo que lê e lembra em detalhes. Enã disse acreditar que não tem,
mas que, se tiver, é um grau bem leve.
“O que eu consigo lembrar
são coisas da minha infância remota, de quando eu tinha um ano de idade.
Eu lembro, mas quando eu conto para as pessoas, elas não acreditam. Aí
conto para minha mãe e familiares e eles confirmam”, disse.
Além
dessas características, o motivo que levou Enã e o personagem Shaun
Murphy a se interessarem pela medicina também é parecido: ambos perderam
pessoas importantes ainda na infância (Enã o pai e Shaun o irmão) e
isso despertou a vontade de ajudar os outros a viver.
Uma das
maiores vantagens em Shaun Murphy como cirurgião, sempre citada na
série, é uma que Enã acredita ser também a sua maior vantagem como
médico.
“O hiperfoco, na minha opinião, é minha maior vantagem na
minha profissão. Vou sempre estar 100% focado na cirurgia, se tiver
fatores emocionais, se acontecer algo antes, isso não vai me
atrapalhar”, afirmou.
Assim como a série tem trazido a mensagem de que pessoas com
Transtorno do Espectro Autista podem ser independentes e seguir qualquer
carreira com excelência, Enã acredita ser um exemplo de que tudo é
possível.
“Sinceramente, não existe nada que impeça a gente
[autistas] de fazer o que quer fazer. Não só para medicina, mas para
tudo que você desejar, tudo que você tiver vontade, você pode. Assim
como o Bill Gates”, disse Enã, usando como exemplo o co-fundador da
Microsoft, citado no livro “Thinking in pictures”, de Temple Grandin,
como tendo características autistas.
Fonte: O Livre
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