quinta-feira, 30 de maio de 2019

Cientistas conseguem monitorar conexão entre neurônios em tempo real


Ao longo de décadas, os cientistas têm procurado uma maneira de assistir a uma “transmissão ao vivo” do cérebro. Mas esse sonho ambicioso enfrenta alguns entraves.  O principal deles é a velocidade da atividade neural, já que os sinais elétricos emitidos pelos neurônios podem viajar entre células a uma velocidade de até 270 quilômetros por hora. Para conseguir observar os sinais cognitivos criados pelo cérebro sinalizando a realização de atividades simples, como o mero ato de “coçar uma perna”, é preciso ferramentas que tornem essa mecânica visível aos olhos humanos. Em um novo estudo, publicado na revista britânica Nature, cientistas de Harvard, nos Estados Unidos, desenvolveram um sistema que propiciou essa observação.

A base do método desenvolvido pelos pesquisadores norte-americanos surgiu ainda na década de 1980, durante um levantamento no Mar Morto, realizado por um ecologista israelense. O especialista encontrou um organismo que realiza um truque extremamente interessante: ele é capaz de converter a luz solar em energia elétrica. Essa façanha é possível graças a uma proteína chamada Archaerhodopsin 3.

Trinta anos após a descoberta, a equipe de Harvard removeu essa proteína e a introduziu em um cérebro humano, num experimento laboratorial, com o objetivo de realizar análises mais apuradas. “Poderíamos inverter o truque? A proteína poderia converter a atividade elétrica dos neurônios em flashes detectáveis de luz? Depois de alguns anos de trabalho duro, descobrimos que sim”, ressaltou, ao Correio, Yoav Adam, um dos autores do estudo.

No sistema concebido pelos investigadores, diante da incidência de luz vermelha, a Archaerhodopsin 3 transforma a voltagem em luminosidade. Os cientistas também emparelharam a proteína com outra, semelhante a ela, que, quando iluminada com tom azul, acende impulsos elétricos nos neurônios. Com esse sistema, os pesquisadores conseguiram controlar e registrar a atividade de células cerebrais in vitro. “O sistema funcionou bem em neurônios fora do cérebro, mas o nosso Santo Graal era fazer com que isso funcionasse em camundongos vivos”, detalhou Adam.

Cinco anos depois, o objetivo principal da equipe se tornou realidade. Após um trabalho que contou com a participação de mais de 24 neurocientistas, biólogos, físicos e cientistas da computação, os cientistas ajustaram a proteína para trabalhar com animais vivos mediante manipulação genética, aperfeiçoando ainda mais a técnica. A equipe construiu um microscópio personalizado — com um projetor de vídeo para utilizar um padrão de luzes vermelha e azul no cérebro de ratos vivos —  e, por meio do aparelho, conseguiram monitorar a atividade cerebral de roedores enquanto eles caminhavam. “Com essa tecnologia, conseguimos, basicamente, construir um pequeno filme do cérebro desses animais”, assinalou o Yoav Adam.

Análise detalhada


Com a estratégia criada em Harvard, os cientistas são capazes de gravar a atividade de até 10 neurônios de uma vez, e, três semanas depois, conseguem novamente identificá-los para serem novamente registrados, um feito que seria impossível com as tecnologias existentes. “Mesmo com simples mudanças no comportamento ‘caminhar e descansar’, conseguimos observar alterações robustas nos sinais elétricos, que também variavam entre diferentes tipos de neurônios no hipocampo. Alguns vão mais rápido, outros, mais devagar”, ressaltou o coautor do estudo.

Agora, os cientistas pretendem aperfeiçoar o método para analisar de forma ainda mais minuciosa a atividade cerebral. “Estamos interessados em investigar a função cerebral em comportamentos mais complexos. Como a atividade cerebral muda quando o animal aprende ou esquece algo? Como as diferentes regiões do cérebro são ativadas? Qual é o papel dos diferentes tipos de neurônios?”, elencou. “Queremos aprender mais sobre memória espacial, por exemplo. Qual o processo em que o rato lembra onde está a sua estação de comida? Ninguém sabe detalhes desse tipo de memória”, complementou Adam.

O uso da tecnologia também pode abrir portas para pesquisas médicas no futuro. “Estamos focados em entender como o cérebro funciona em condições saudáveis, mas é claro que uma melhor compreensão da função neural também será útil para compreender doenças. Há muitas maneiras de modelar enfermidades humanas em camundongos e nossa tecnologia pode ser usada para estudá-las. Por exemplo, meu laboratório tem feito alguns estudos em ratos que têm uma mutação genética que causa epilepsia”, citou o pesquisador.

Rogerio Panizzutti, psiquiatra, neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assinalou que o método desenvolvido em Harvard se destaca pelo uso da luz de uma forma mais complexa, algo que ainda não havia sido feito. “Esse método de controlar pela luz a atividade cerebral já foi explorado por muitos cientistas, inclusive aqui na UFRJ, mas, nessa pesquisa, avançamos mais um degrau, de controlar e estimular a atividade dos neurônios pela luz. Esse é o grande ganho dessa tecnologia”, ressaltou o cientista, que não participou do estudo.

Para Panizzutti, pesquisas que buscam o monitoramento cerebral caminham com o mesmo objetivo: entender os mais diversos mistérios que ainda circundam o órgão responsável por controlar todo o corpo humano. “Aqui, no Rio de Janeiro, tivemos recentemente uma pesquisa de uma estudante que mostrava qual a região cerebral responsável por atenuar a dor física. Isso é algo muito importante, pois pode ajudar a entender enfermidades e contribuir para interferências futuras”, destacou o neurocientista.


Fonte: Correio Braziliense







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