Na
primeira metade do século 19, o médico irlandês William Brooke O'Shaughnessy
viveu alguns anos na Índia e descobriu algo totalmente novo para o mundo
ocidental: a maconha.
A cannabis já era usada na região havia
milhares de anos, como remédio ou substância recreativa. Mas, na literatura
médica do Ocidente, não havia nenhuma informação sobre a planta.
"Não consegui localizar referências
sobre o uso dessa substância na Europa", escreveu o médico, em um estudo
sobre a cannabis publicado em 1839 na revista científica Journal of the Asiatic
Society of Bengal, com o título "Sobre as preparações da cannabis indiana.
O estudo de O'Shaughnessy propunha
registrar o potencial médico da cannabis pela perspectiva científica. Além
disso, fazia observações sobre o uso social da substância. Segundo
O'Shaughnessy, a droga era consumida por "todo tipo de pessoa". Entre
seus efeitos "fascinantes", estavam "a felicidade
eufórica", "a sensação de voar", um "apetite voraz" e
"um intenso desejo afrodisíaco".
lustração da planta de Cannaibs Indica
Experimentos científicos com a maconha na India
Nascido em 1809, O´Shaughnessy estudou
medicina na Universidade Trinity, em Dublin, e depois em Edimburgo, Escócia. Ainda
muito jovem, com 24 anos, aceitou uma proposta para trabalhar em Calcutá, na
Índia, como assistente cirúrgico da então famosa Companhia das Índias
Orientais, empresa britânica que controlava e governava grande parte das
Índias.
Foram oito anos em Calcutá. Nesse período,
o médico irlandês experimentou uma variedade de plantas locais, como o ópio e a
cannabis.
A cannabis, especificamente,
era muito conhecida pela sociedade local, mas não pela medicina. Então, o
médico decidiu fazer uma pesquisa rigorosa, consultando tanto fontes
bibliográficas como humanas.
Além disso, fez experimentos
com diferentes animais, como ratos, coelhos, gatos, cachorros, cavalos, macacos
e até aves e peixes, descrevendo o efeito da droga em cada um deles.
Em um desses experimentos, o
médico deu dez gramas da substância para um cachorro de porte médio. Meia hora
depois, o animal "ficou estúpido e sonolento" e "sua cara ficou
com aspecto de total e absoluta embriaguez". "Estes sintomas duraram
de uma a duas horas e depois foram desaparecendo gradualmente. Seis horas
depois, o animal estava ativo e perfeitamente bem", assinalou.
Depois de confirmar que o uso de cannabis era seguro,
O'Shaughnessy passou a experimentar a substância em humanos, tanto adultos como
crianças. Além disso, passou a usar a cannabis em tratamentos de seus pacientes
do hospital - doentes de cólera, reumatismo, raiva, tétano e pessoas com
convulsões
Vendedor de cannaibs na India em meados do seculo 19
Vista externa do Colegio Medico de Calcuta em 1878
As conclusões do médico sobre a maconha
O médico irlandês não conseguiu curar
nenhuma doença com a cannabis. Mas concluiu que a substância poderia ajudar a
tratar sintomas graves de muitas enfermidades. Podia, por exemplo, acalmar e
aliviar a dor, bem como sufocar espasmos musculares típicos de tétano e raiva,
reduzindo "os horrores da doença".
Também observou que a cannabis
poderia prevenir convulsões em um recém-nascido, com apenas 40 dias de vida.
Sobre esse caso, o médico escreveu: "a profissão ganhou um remédio
anticonvulsivo de grande valor".
Em 1839, O'Shaughnessy
defendeu publicamente o uso da cannabis na medicina, principalmente como
analgésico, ao apresentar sua tese na Sociedade Médica e Física de Calcutá. O
estudo causaria um furor na Inglaterra colonial - e depois por toda a Europa e
Estados Unidos. E é considerado o marco da introdução da cannabis na medicina
ocidental.
A cannabis foi utilizada nos Estados Unidos como remedio a partir de 1850
Anuncio de jornal italiano, em 1881, propagandeia efeitos beneficos de cigarros com cannabis da India: detem ataques de asma, resfriados, perda de voz, dor facial, insonia e outros
Cannabis se tornou uma febre médica no Ocidente
Quando O'Shaughnessy retornou para a
Inglaterra, em 1841, levou consigo amostras de cannabis, tanto em planta como
em resina.
Apresentou a substância para a
Sociedade Farmacêutica Real e para os Jardins Botânicos Reais de Kew, em
Londres, e descreveu seus estudos com cannabis, afirmando que a substância era
um remédio "milagroso" para algumas das piores doenças do século 19.
A partir de então, muitos
pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos começaram a experimentar a
cannabis em diferentes tratamentos médicos. Muitos também tentaram descobrir
qual era o ingrediente ativo da cannabis - mas isso só ocorreria um século
depois, em meados da década de 1960.
Em meados do século 19,
remédios a base de cannabis passaram a ser produzidos, alguns deles baseados
nas receitas deixadas pelo médico irlandês. Os produtos foram se tornando
populares, alcançando seu auge no final do século.
Mas, na virada para o século
20, o uso desses remédios começou a cair. Um dos motivos foram as dificuldades
para produzir resultados estáveis a partir de diferentes lotes de plantas, já
que a potência da cannabis variava muito.
Já nos anos 1930, o uso de
remédios medicinais a base de cannabis começou a ser restringido. Em 1937, sua
venda foi proibida nos Estados Unidos. Em 1942, a cannabis foi retirada da
enciclopédia farmacêutica. E, a partir dos anos 1950, a posse de maconha passou
a ser criminalizada e multada. Algo similar ocorreu em outros países.
Hoje, o uso e aceitação da
cannabis em tratamentos médicos segue sendo uma controvérsia.
Descobertas feitas a 150 anos são válidas até hoje
Curiosamente, depois do êxito da sua tese
sobre o potencial médico da maconha, O'Shaughnessy mudou de rumo e passou a se
dedicar à engenharia elétrica.
Voltou para a Índia, onde passou 15 anos trabalhando em uma linha de
telégrafo. Por seus esforços no projeto, recebeu da Rainha Vitória o título de
"Sir".
Em 1860, retornou mais uma vez para Inglaterra. Em 1889, faleceu. Pouco
se sabe sobre seus anos finais.
Talvez o mais surpreendente da história de O'Shaughnessy seja que
algumas de suas descobertas em 1839 sejam válidas até hoje: os principais usos
médicos da cannabis continuam sendo como analgésico e anticonvulsivo.
Fonte: G1
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