A história do Ruca tinha sido um instrumento valioso na avaliação cognitiva e emocional daquela criança. Marquei a próxima consulta e despedi-me. O Gabriel beijou-me espontaneamente pela primeira vez.
Desta vez entrou na consulta acordado e a falar. O Gabriel tem seis anos.
Conheci-o com três, metido num carrinho e muito ensonado. Vinha de
Viseu sem diagnóstico. Tinha tido, desde os três meses de idade, crises
epilépticas de vários tipos, muitas delas muito prolongadas e
desencadeadas por febre. Quase não falava e os pais, gente inteligente,
insatisfeitos com a abordagem clínica que o filho estava a ter num outro
centro, decidiram partir em busca de novo parecer. Para mim o
diagnóstico era óbvio e na consulta seguinte tinha a confirmação
genética da síndrome de que suspeitara. Nesse Natal recebi por correio,
num envelope almofadado, um lindo anjinho branco, enviado pela mãe do
Gabriel. Ainda hoje o tenho pendurado no tecto do meu gabinete.
Entretanto a epilepsia do Gabriel tem estado razoavelmente controlada e,
apesar do atraso no desenvolvimento da linguagem, é uma criança com uma
vida normal. Decidimos adiar um ano a entrada para o ensino básico,
dando-lhe mais algum tempo de preparação na pré-primária. Hoje a
consulta era rotina. Ajustar doses de fármacos, escrever informação para
a escola....
Quando ele entrou no consultório, reparei que trazia na mão um saquinho
cheio de M&Ms e pedi-lhe para me dar um. Fingiu não ouvir , foi
direto à carteira da mãe onde meteu cuidadosamente a saqueta das
guloseimas e em seguida correu o fecho.
Comecei a conversar com os pais e ele, entretanto, foi direto à mesinha das crianças onde se encontram jogos e livros.
- O Ruca! - exclamou entusiasmado.
- Pegou no livro e pôs-se de pé ao meu lado.
- Conta a história!
Aproveitei o momento para avaliar as suas capacidades intelectuais e
linguísticas e comecei-lhe a contar a história. O Ruca levantava-se da
cama entusiasmado, lavava-se e vestia-se sozinho rapidamente, pois
estava convencido que naquele dia ia ao circo. Ao chegar à cozinha o pai
disse-lhe que não era naquele dia mas sim no seguinte, sábado, que
iriam ao circo. De repente reparei na cara do Gabriel. Estava quase a
chorar. Eu estava muito preocupada a ler o texto e não tinha reparado no
desenho que o acompanhava. Na imagem colorida, via-se o Ruca na cozinha
em frente ao pai, com uma expressão tristíssima. Mudei rapidamente de
página e continuei a ler, desta vez atenta à imagem que acompanhava o
texto. O pai consolava o Ruca dizendo-lhe que nesse mesmo dia, depois da
escola, iam lanchar a casa dos avós e comer bolo de chocolate. Olhei
para a cara do Gabriel. A expressão de tristeza tinha desaparecido, tal
como na cara do Ruca. Ia a virar a página mas o Gabriel prendeu-me a mão
e ordenou:
- Espera!
Dirigiu-se à carteira da mãe e correu o fecho. Tirou de lá o saquinho de
M&Ms e pediu à mãe para o abrir. Em seguida colocou-o na mesa à
minha frente e disse-me:
- Come!
Não me fiz rogada, meti três dedos no pacote e comi um molhinho de
bolinhas de chocolate. Era hora de almoço e eu tinha fome. Mais a mais
eu senti que, segundo o Gabriel, eu merecia aqueles chocolates.
Continuei a leitura com o Gabriel encostado às minhas pernas. Quando
terminei a história, pegou no livro e arrumou-o em cima da mesinha. Os
pais não fizeram mais perguntas sobre as capacidades cognitivas do
filho. A história do Ruca tinha sido um instrumento valioso na avaliação
cognitiva e emocional daquela criança.
Marquei a próxima consulta e despedi-me. O Gabriel beijou-me espontaneamente pela primeira vez.
Fonte: Visão
Nenhum comentário:
Postar um comentário