O verde da maconha em breve pode ganhar tons amarelos, reproduzindo
as cores nacionais do Brasil. Cada vez mais utilizados como tratamento
alternativo para diversas condições de saúde, dos enjoos provocados pela
quimioterapia contra o câncer a convulsões incontroláveis por remédios
convencionais em crianças, compostos da planta, como o canabidiol (CBD) e
o tetrahidrocanabinol (THC), são alvo de projetos de pesquisa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) que devem levar ao desenvolvimento do primeiro
fitomedicamento à base de maconha no país. Com isso, o uso das
substâncias ganhará rigor científico e padronização ainda inéditos no
mundo, guiando sua aplicação terapêutica.
— A situação que temos
hoje é complicada — justifica Virgínia Martins Carvalho, professora de
Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRJ. — A maconha e substâncias
nela contidas têm propriedades terapêuticas reconhecidas
internacionalmente, e disso não há dúvidas, mas ainda há uma confusão
muito grande para seu estudo, principalmente por conta da proibição, que
dificulta bastante as pesquisas.
Diante disso, Virgínia
apresentou e teve aprovado em novembro um projeto de extensão na
instituição, intitulado Farmacannabis, cujo objetivo principal é
analisar a composição dos extratos de maconha importados ou produzidos
artesanalmente, e clandestinamente, no Brasil com fins medicinais. No
caso dos extratos importados, embora após muitos protestos e ações na
Justiça a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha
autorizado em caráter excepcional sua entrada no país para o tratamento
de crianças que sofrem com a chamada epilepsia refratária, em que os
remédios comuns não foram capazes de controlar as convulsões, até
recentemente estes produtos eram comercializados como suplementos
alimentares nos EUA, e por isso sua fabricação não precisa obedecer a
padrões estritos como os de medicamentos.
Projeto orçado em R$ 250 mil
O problema é tamanho que avaliações feitas pela Administração para
Alimentos e Drogas (FDA, o órgão fiscalizador do setor no país) de
alguns dos extratos mais vendidos nos EUA, entre 2015 e 2016, verificou
que quase nenhum deles continha as proporções de CBD e/ou THC indicadas
em seus rótulos. Além disso, muitas famílias brasileiras não têm
condições de arcar com a compra dos extratos importados — um vidro dos
óleos americanos custa por volta de US$ 300 (cerca de R$ 1 mil), e
dependendo do peso e sintomas da criança, são utilizados até dois deles
por mês —, e acabam plantando maconha e fazendo os compostos em casa, ou
obtêm estes de fabricantes artesanais.
— Ninguém sabe de fato
qual o grau farmacológico destes extratos, isto é, qual a concentração
de CBD e THC neles — conta Virgínia. — Isto dificulta o controle e a
eficácia da dosagem, já que, embora o médico possa prescrever e
acompanhar o tratamento, ele não tem ideia de exatamente quanto CBD e
THC a criança está tomando. Com o Farcannabis, vamos dar suporte
analítico tanto para os pacientes e suas famílias quanto para os
médicos, além de proporcionar aos estudantes experiência em análises
toxicológicas e interação clínica pelo contato com pacientes e médicos.
Ainda
de acordo com Virgínia, até o fim do projeto, inicialmente orçado em
quase R$ 250 mil, também deverá estar em funcionamento uma plataforma
digital de acesso gratuito na qual, mediante inscrição ou cadastro,
médicos, familiares e alunos poderão obter mais informações sobre os
possíveis usos medicinais da maconha, os resultados das análises feitas
durante a iniciativa e como elas foram realizadas.
— A maconha tem
cerca de 70 canabinoides e seus ácidos, cada um deles com suas
propriedades e efeitos — destaca Virgínia. — Falar do canabidiol como se
não estivéssemos nos referindo à planta procura dar uma ideia de
afastamento da maconha, o que é uma falácia. Nenhum destes canabinoides
existe isolado, e precisamos saber como eles atuam entre si, em
particular o THC e o CBD. Eles têm uma ação dinâmica no sistema nervoso
central, num efeito que chamamos de “comitiva”, que é variável de pessoa
a pessoa. E é por isso que conhecer suas proporções nos extratos é
muito importante. Sabemos que estes extratos ajudam, mas ainda
precisamos saber como dentro de um planejamento terapêutico segundo sua
composição e dosagem, isto é, porque algumas pessoas se beneficiam mais
de extratos que tenham mais THC e outras de extratos com mais CBD. E
para isso temos que estudá-los. Só com este monitoramento e os relatos
clínicos poderemos conhecer melhor esta associação.
Esta
investigação também será fundamental para o projeto na Fiocruz. Lançado
em março deste ano com a criação de um grupo de trabalho do qual a
própria Virgínia faz parte, o Fio-cannabis discute a viabilidade e
formatação de uma ampla e longa pesquisa científica com intuito de,
provada sua eficácia e segurança, eventualmente fabricar um
fitomedicamento de Cannabis para alívio da epilepsia refratária.
—
A ideia é estudar os extratos tanto do ponto de vista de toxicidade
quanto de segurança, além de fazer ensaios pré-clínicos e clínicos das
fases 1, 2 e 3 para avaliar sua eficácia, isto é, seguir todo o processo
necessário para o registro de um medicamento no Brasil junto à Anvisa
com foco na epilepsia refratária — diz Hayne Felipe da Silva, diretor do
Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), que
encabeça a iniciativa.
Com uma tríade de segurança, eficácia e
qualidade igual à de qualquer outro medicamento, o pesquisador pretende
chegar a um produto feito no Brasil com custo menor e que possa vir a
ser distribuído pelo SUS (Sistema Único de Saúde, do governo federal),
além de dar a ele o rigor de medicamento que não há nos EUA.
De
acordo com Silva, a expectativa é de que até o fim deste ano o projeto
de pesquisa definindo, entre outros fatores, como ela será feita,
quantos voluntários serão necessários etc, já esteja pronto para ser
encaminhado à Anvisa, com os estudos começando na prática já no ano que
vem. Ao todo, ele espera que o processo de desenvolvimento do
fitomedicamento leve de cinco a dez anos.
— Temos que começar
logo, ainda mais por se tratar de substâncias que têm ação no sistema
nervoso central, um complicador adicional.
Silva conta, no
entanto, que um dos principais obstáculos que ainda faltam ser superados
para dar início efetivo à pesquisa é justamente encontrar um fornecedor
regular dos extratos de Cannabis, seja do Brasil ou do exterior, com a
qualidade e padrão de composição necessários para uma investigação
científica do tipo. O que é certo, porém, é que a Farmanguinhos não vai
plantar maconha e produzir os compostos.
— A Farmanguinhos é uma
indústria de transformação, então vamos fazer com este produto o que
fazemos com os outros medicamentos: compramos o princípio ativo e
formulamos o remédio.
Mudança de patamar dos medicamentos
Na outra ponta deste
esforço de duas das maiores instituições de pesquisa do Brasil estão
pessoas como Sofia. A menina, portadora de CDKL5, doença rara que tem
como um de seus sintomas crises convulsivas, é filha da advogada
Margarete Santos de Brito, presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e
Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), e uma das crianças que estão
se beneficiando da autorização da Anvisa para importação dos extratos de
Cannabis. Segundo Margarete, atualmente Sofia toma um misto de extratos
de Cannabis importados e artesanais, além de outros remédios e
tratamentos convencionais para sua condição, que ela estima terem
reduzido em 70% seus ataques epiléticos.
— Para a gente, estas
pesquisas mudam completamente o patamar dos fitomedicamentos de Cannabis
no Brasil — avalia. — Como os extratos importados também vão ser
testados, teremos um controle de qualidade que não é realizado nem nos
EUA, já que as informações em seus rótulos não necessariamente
corresponde à realidade.
E a preocupação de Margarete vem de
experiência própria. Ela conta que recentemente adquiriu um extrato
americano que dizia ser livre de THC, o canabinoide de efeito
euforizante da maconha e um dos mais presentes na planta. Antes de dá-lo
a Sofia, porém, ela decidiu prová-lo e acabou tendo uma “onda”, o que a
fez decidir não administrá-lo à menina.
— Estes extratos entram
no Brasil a preço de ouro, são extremamente caros e não têm
necessariamente qualidade — reclama. — Já os produzidos artesanalmente
aqui podem ser tão ou mais eficientes do que os que vêm dos EUA, mas com
eles também não sabemos quais os percentuais de canabinoides que
estamos dando para as crianças. Mas, com estas pesquisas, vamos saber.
Para Margarete, também é relevante o fato de os estudos estarem nas mãos de duas renomadas instituições de pesquisa no país.
—
Isto serve como um aval de que a maconha pode ser sim um remédio —
destaca. — E por mais que este processo de investigação possa demorar,
ter um fitomedicamento de Cannabis verde-e-amarelo, ou na verdade mais
verde que amarelo, será uma realização muito importante.
Enquanto
isso, contudo, Margarete procura garantir a continuidade do tratamento
da filha. Na última semana de novembro, a advogada obteve na Justiça um habeas
corpus preventivo que proíbe as polícias Civil e Militar do Rio de
detê-la e/ou apreender as plantas de maconha que cultiva em casa para
produzir os extratos de Cannabis artesanais que dá a Sofia. O
salvo-conduto é válido até que seja julgado em definitivo processo que
ela move na 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro em que pleiteia permissão
para cultivar a planta ilícita com fins medicinais.
Fonte: Extra
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