quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Larva de tênia é a maior causa de epilepsia em regiões de baixa e de média renda

A neurocisticercose (NCC), causada pela larva da Taenia solium, é considerada a maior causa de epilepsia adquirida em regiões endêmicas, como América Latina, Ásia e África. De 70% a 90% dos casos manifestam crises, geralmente focais (numa área restrita do cérebro) com generalização bilateral (em ambos os hemisférios). As crises ocorrem durante a degeneração de cistos no tecido cerebral, que causa grave inflamação. A principal forma de transmissão é pela ingestão de vegetais com ovos de T. solium ou uso de água contaminada no preparo de alimentos.

Apesar dos avanços recentes em tecnologia diagnóstica, ainda há controvérsias sobre os métodos mais eficazes para investigar a doença e tratar diferentes perfis de pacientes. Pensando em investigar os avanços e dúvidas no diagnóstico e tratamento da doença, pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) desenvolveram um artigo de revisão que avalia critérios de conduta e explora estratégias futuras, enfatizando a necessidade da medicina personalizada.

Thales Pardini, autor do artigo e doutorando no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP, explica que a proposta do trabalho é ser um guia prático, que defina protocolos para o atendimento clínico. “Havia uma necessidade de transformar as informações de neurologia em algo didático para a população médica e para os residentes”, afirma.

Tissiana Haes é médica especialista em Neurofisiologia pelo HC. Em seu doutorado, ela realizou um levantamento dos casos notificados de neurocisticercose em Ribeirão Preto nas últimas três décadas. “Agora compilamos perspectivas dos serviços e recursos oferecidos. Existem diferenças regionais, de desenvolvimento socioeconômico e cultural relevantes [para a ocorrência da doença]”, explica.

Regiões endêmicas são caracterizadas pela precariedade do saneamento básico. “Quando uma água contaminada é utilizada para lavar vegetais, isso vai ser ingerido de maneira acidental”, afirma a pesquisadora. Ela complementa que, após a ingestão dos ovos, as oncosferas penetram a mucosa intestinal, chegam à circulação sanguínea e se instalam em tecidos como o cérebro, onde se desenvolvem em cisticercos. “Aqueles cisticercos podem permanecer inativos ou desencadear inflamação”, ressalta.

O consumo de carne de porco crua ou mal cozida, principal forma de adquirir a teníase (infecção intestinal causada pelo mesma parasita), também apresenta riscos: o portador elimina ovos nas fezes, que podem contaminar água e alimentos, perpetuando o ciclo da NCC. “Se uma pessoa tem teníase, ela vai liberar os ovos nas fezes e pode se autocontaminar”, explica Thales Pardini. 

Diagnóstico padrão

O exame de imagem é um dos pilares mais importantes para avaliar o tipo de lesão cerebral do paciente. Segundo os pesquisadores, a tomografia computadorizada é útil para identificar lesões calcificadas. A ressonância magnética é mais eficiente na detecção de cistos ventriculares e subaracnóideos (tumores benignos que se desenvolvem em uma das três meninges que revestem o encéfalo e a medula). 

Exames sorológicos são comuns e têm boa sensibilidade em casos de múltiplas lesões, mas falham em identificar lesões únicas ou calcificadas. “Para realizar testes de imunologia durante a investigação, dependemos de recursos financeiros mais avançados”, reforça Pardini. 

Após o exame de imagem, é necessário avaliar se os cisticercos estão no parênquima cerebral (massa cinzenta), forma mais comum e branda da doença, ou nas cisternas basais subaracnóideas (região mais inferior que envolve o encéfalo e por onde circula líquido cérebro-espinhal), causando a forma racemosa. A NCC racemosa aumenta o risco de hidrocefalia e outras complicações neurológicas.

“Se a larva está nos ventrículos ou em volta do tronco cerebral, região onde o líquido é drenado, ela pode obstruir a passagem e aumentar a pressão intracraniana, gerando uma manifestação muito mais grave [da neurocisticercose]” – Tissiana Haes

A inflamação do cisto pode gerar meningite crônica. “O paciente pode ter muita dor de cabeça, crises epilépticas muito fortes e, junto com a hipertensão intracraniana, isso pode ser ameaçador à vida”, complementa.

A cientista comenta que testes inovadores estão sendo desenvolvidos a partir de antígenos recombinantes e proteínas sintéticas, mas ainda não estão disponíveis na maioria dos centros. “Estamos utilizando outras partes do parasita para melhorar a detecção pelo sangue ou pelo líquido”, explica.

Tratamento personalizado

O uso de antiparasitários é recomendado quando há evidência de cistos viáveis. O Albendazol e o Praziquantel são as drogas mais indicadas em casos de 1-2 cistos viáveis e de múltiplas lesões, respectivamente. Estudos mostram que a combinação dos dois medicamentos pode ser mais eficaz do que a monoterapia. Porém, há controvérsia sobre tratar ou não lesões únicas, pois muitas regridem espontaneamente.

O segundo passo é o uso de anti-inflamatórios, o mais comum sendo o corticosteroide – fundamental para reduzir edema perilesional e reações inflamatórias. Em seguida, a recomendação é de medicações anticrise, para tratar a epilepsia. “Além desse tripé, a cirurgia é indicada em situações específicas”, diz Pardini. 

A forma da doença, a imunossupressão do paciente, a quantidade e a localização dos cistos influenciam na eficácia do tratamento. “Se a imunidade não for boa, a resposta vai ser diferente: a medicação controla cistos viáveis, mas o restante quem faz é o organismo”, explica o pesquisador. “Por fim, existe o fator adesão, então o tratamento da NCC precisa ser muito individualizado.”

De acordo com o guia, alguns grupos demandam atenção especial. Na população pediátrica, a doença tende a ser mais benigna, mas casos múltiplos apresentam maior risco de epilepsia recorrente. No caso de gestantes, alterações imunológicas da gravidez podem alterar o curso da doença, portanto o tratamento deve equilibrar risco materno e fetal. 

Pistas biológicas

Biomarcadores são pistas biológicas que ajudam os médicos a avaliar a presença da doença. No caso da NCC, eles indicam se a infecção está ativa, o nível da resposta inflamatória do organismo e o risco de complicações. Eles também são úteis para decidir a intensidade do tratamento (com vermífugo ou apenas controle sintomático) e monitorar a resposta: se o biomarcador cai, significa que o tratamento está funcionando. “Uma característica do cisto quando ele está no parênquima cerebral é uma invaginação da cabeça da larva, chamada escólex”, exemplifica Tissiana.

Pacientes sintomáticos costumam ter altos níveis de citocinas inflamatórias, enquanto pacientes assintomáticos têm maior concentração de moléculas que “freiam” a inflamação. A Metaloproteinase-9, por exemplo, é uma enzima ligada a processos inflamatórios e à quebra da barreira hematoencefálica, e estudos investigam se ela pode sinalizar maior risco de edema e crises epilépticas em lesões calcificadas. 

Ainda existem marcadores parasitários: antígenos circulantes da T. solium no soro, urina ou liquor podem indicar infecção ativa. Segundo Pardini, o avanço nesse conhecimento é crucial para personalizar as recomendações na prática clínica, em vez de adotar um protocolo único.

Prevenção e cuidados

Além de construir um guia, o artigo reflete sobre mudanças estruturais necessárias para o controle da doença. Há uma escassez de ensaios clínicos robustos com pacientes, e muitos protocolos de intervenção se baseiam em estudos pequenos ou consenso de especialistas. “É uma doença que ficou estacionada na literatura”, comenta Tissiana. 

A vulnerabilidade socioeconômica das populações mais afetadas também é uma barreira para ações efetivas, pois o ciclo da contaminação se perpetua em regiões com condições de higiene precárias.

“Muitas vezes, as pessoas ficam sem diagnóstico e precisam de tratamentos prolongados, e localidades endêmicas não têm como custear esses tratamentos” – Thales Pardini 

Para Tissiana, a pesquisa não propõe apenas mudanças no cuidado individual, mas resoluções em saúde pública que reduzam a proliferação da T. solium. O controle da transmissão pode ser otimizado com a vacinação de suínos, cuidados veterinários como o uso de oxfendazol (vermífugo) e melhorias em saneamento e tratamento da água.



Fonte: Jornal da USP
 

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