Não existe indivíduo mais importante para o progresso do estudo da
memória do que Henry Gustave Molaison, um americano epiléptico de
Connecticut conhecido desde 1953 (aos 27 anos) até sua morte em 2008 em
textos das ciências do cérebro em todo o mundo simplesmente como H.M.
1953 foi o ano em que Molaison foi salvo da epilepsia mais violenta por
uma psicocirurgia feita pelo médico genial William Scoville no Hartfort
Hospital de Connecticut. Colateralmente, Henry acabaria abrindo para o
mundo o universo cheio de sutilezas que é o sistema de memória abrigado
no cérebro humano.
Pegue qualquer livro
pré-2008 de neurociência ou psicologia, e são enormes as chances de você
topar em alguma página com a história de Henry Molaison, possivelmente
acompanhada de adjetivos como “incrível” e “fascinante”. A vida
pós-cirurgia de Henry mostraria que a memória não é um processo único;
ou que, nas palavras de Suzanne Corkin (1937-2016), biógrafa e
neurocientista que trabalhou com o paciente, “nosso cérebro é como um
hotel com diferentes tipos de hóspedes – lar para diferentes tipos de
memória, cada uma ocupando seu próprio conjunto de quartos”.
O livro de Corkin, Presente permanente, publicado em 2013
nos Estados Unidos e traduzido agora no Brasil pela Record com revisão
técnica de Suzana Herculano-Houzel, mistura a história de vida de Henry
Molaison com a história do desenvolvimento da ciência da memória. Como
resultado, ao atravessar as quase quatrocentas páginas de texto, o
leitor sai educado sobre um fascinante tópico científico e cativado pelo
aspecto mais humano da questão.
Henry sofria ataques epilépticos desde os 10 anos de idade. Primeiro, eles eram do tipo “petit mal”,
apagões que duram algumas dezenas de segundos, durante os quais a
pessoa fica estática e perde qualquer contato com o mundo em volta. Mas
quando Henry chegou aos 15 anos, os ataques ficaram cada vez mais
violentos, com enrijecimento dos membros seguido de convulsões. Aos 27
anos, a vida se tornara um inferno. Nenhum dos tratamentos disponíveis à
época serviam mais para amenizar o quadro. Foi quando Henry acabou como
paciente do doutor Scoville, que – com base em estudos e técnicas que
se acumulavam desde os anos 20, e aproveitando a voga da psicocirurgia –
propôs uma operação experimental: a extração, em cada lado do cérebro,
da metade anterior do hipocampo e parte do córtex circundante, além de
mais da metade da amígdala. Acreditava-se que, sem essas regiões, de
papel central em ataques epilépticos, as crises do paciente se
reduziriam consideravelmente. De fato, foi o que aconteceu.
Mas algo mais aconteceu: após a cirurgia, Henry não conseguia mais
formar novas memórias. Por exemplo: todas as vezes que médicos e
enfermeiras entravam em seu quarto no hospital, tinham que se apresentar
novamente, porque Henry já havia esquecido seus nomes e rostos desde a
última vez que os vira – no dia anterior ou até no mesmo dia!
Isso aconteceu porque, como viria a ficar claro, o hipocampo é uma
estrutura fundamental para a consolidação de novas informações. Quando
os dados do mundo entram em nosso cérebro, vindo dos sentidos, alguns
deles acabarão armazenados, como memória de longo prazo, nas regiões
corticais, mas antes disso eles precisam ir para o hipocampo e voltar para o córtex. Sem o trabalho do hipocampo, você ainda poderá recuperar memórias dos tempos em que ainda tinha um hipocampo funcional, mas não conseguirá criar novas memórias.
A compreensão desse processo foi um dos presentes involuntários de
Henry Molaison para a ciência, dentre tantos outros. Desde a sua
cirurgia em 1953 e o impacto imediato que seus problemas de memória
tiveram na equipe médica, mais de uma centena de cientistas examinaria
Henry, para levantar e testar hipóteses relacionadas ao funcionamento da
memória humana e temas correlatos, como as relações entre memória e
emoção. A partir de seus 27 anos, a história de Henry, um sujeito sempre
fácil de lidar e educado, é cheia de lances impressionantes que
continuamente empurraram pesquisadores para novas fronteiras do
conhecimento sobre a mente.
Antes de mais nada, confirmou-se a hipótese de que memórias de curto e
longo prazo são tipos distintos de processamento cognitivo e, logo,
provêm de bases biológicas diferentes. De fato, a memória de curto prazo
de Henry (informações que mantemos na mente por alguns segundos,
enquanto executamos alguma tarefa) ficou preservada, enquanto a memória
de longo prazo (ou seja, a capacidade de transformar aquela memória de
momento em uma memória permanente) se perdeu. Ele conseguia se lembrar
de muita coisa de antes do ano da cirurgia – experiências na escola, em
casa, nas férias –, mas não guardava o que acontecia após esta data.
Mas esperem só. A memória fica mais intrincada do que isso. Não foi
todo tipo de memória de longo prazo que Henry perdeu. Apenas a memória declarativa (ou explícita), que precisa de processamento consciente. Sua memória não declarativa
(implícita, inconsciente) não foi prejudicada. Este último tipo de
memória de longo prazo depende do funcionamento de regiões como os
núcleos da base e o cerebelo – que não foram afetadas na psicocirurgia
de Henry.
O caso de Henry também mostrou o fracionamento dos passos da memória.
Para que possamos dizer que temos algo consolidado na mente, precisamos
ter intactos os processos de codificação, armazenamento e recuperação.
Inúmeros testes cognitivos realizados com Henry mostraram que ele
codificava informações normalmente, mas não as armazenava, e por
conseguinte não as recuperava.
Existe no livro de Suzanne Corkin um relato delicioso, que ilustra
perfeitamente o estado dos diversos tipos de memória no cérebro de
Henry. Certa vez, nos anos 1980, antes de pegar Henry para levá-lo para o
centro de pesquisas no MIT onde Corkin acompanhava seu progresso, um
assistente da faculdade passou em um McDonald’s para almoçar e voltou
para o carro com um copo de café. Quando Henry entrou no carro e,
durante o trajeto, olhou pela primeira vez para o copo, ele disse “Ei,
eu conheci um cara chamado John McDonald quando era menino!”, e começou a
contar histórias suas com o garoto. Em seguida, ele virou o rosto para
ver a paisagem ao lado da estrada. Pouco tempo depois, bateu a vista no
copo mais uma vez e exclamou “Ei, eu conheci um cara chamado John
McDonald quando era menino!”, passando a contar as mesmas histórias. A
cena ainda se repetiu de novo e de novo, até que o motorista finalmente
escondeu o copo do McDonald’s. Henry lembrava de um fato longínquo,
solidificado em seu córtex bem antes da cirurgia de 1953, mas não
conseguia formar a nova memória de que acabara de contar uma história
para o motorista!
Mente e cérebro
Ainda
nos anos 80, Henry Molaison confirmou outra teoria: a do psicólogo
cognitivo George Mandler, que dizia que a memória de reconhecimento se
dividia em dois processos distintos (familiaridade e recordação), baseados em áreas distintas do cérebro. Familiaridade
é quando você vê alguém na rua ou numa festa e tem a sensação de já
tê-lo visto antes, mas não lembra a circunstância. Se você lembra a
circunstância, você está recordando. Pois bem. A capacidade de recordação
havia sido destruída em Henry – porque o hipocampo é necessário para o
processo, e o hipocampo de Henry fora removido –, mas não sua capacidade
de reconhecimento via familiaridade, como ficou claro após
vários testes. Henry ajudou a desvendar que este último subtipo de
memória depende do funcionamento de uma região vizinha ao hipocampo, o
córtex perirrinal, parte que fora poupada na cirurgia de 1953. Daí,
relata Suzanne Corkin, “o sentido de familiaridade que permeava o mundo
de Henry” e o ajudava a “lidar com sua amnésia incapacitante ao
enraizá-lo e dar a ele o sentimento de que estava em família no Bickford
e no MIT”.
Outra colaboração de Henry para a ciência da mente foi auxiliar a
entender a complexidade das separações e interconexões entre memória e
emoção. O próprio Henry tinha pouquíssimos momentos de raiva. Como
escreve Suzanne Corkin, quando consideramos o quanto da ansiedade e
da dor da vida diária surge de cuidar das nossas memórias de longo
prazo e de preocuparmo-nos em planejar o futuro, podemos apreciar porque
Henry viveu a maior parte de sua vida com relativamente pouco estresse.
Quando sua mãe foi hospitalizada para fazer uma cirurgia, em pouco
tempo ele esqueceu a informação em si, devido à ausência do hipocampo,
mas ainda assim permaneceu vários dias com uma sensação vaga de
ansiedade. Essa sensação se impunha vinda de áreas do sistema límbico,
estruturas evolutivamente mais primitivas do cérebro, que não foram
prejudicadas pela cirurgia de 1953, e onde a informação sobre a mãe
chegara em algum momento, evidentemente causando efeitos.
Suzanne Corkin e outros cientistas no entorno de Henry só começaram a
testar e estudar mais profundamente sua estrutura emocional nos anos
1980. Corkin lembra que não havíamos feito essa avaliação antes porque, nos anos 1960 e 1970,
muitos neurocientistas, inclusive membros do meu laboratório, evitavam
tópicos que pertencessem ao reino da psicologia clínica e da
psiquiatria.
É interessante observar que esse passo da equipe de Corkin finalmente
ocorreu quando o ambiente científico, nos Estados Unidos e no ocidente
como um todo, via cada vez mais como fútil a tentativa de separar
totalmente as ciências do cérebro e as da mente umas das outras. A
própria separação entre mente e cérebro, se for além de algum nível
necessário para o didatismo, pode se tornar mera ideologia e prejudicar a
compreensão de questões urgentes como os transtornos mentais.
Como outra notável neurocientista, Nancy Andreasen (1938- ), escreveu no
início deste século, a propósito da rixa entre alguns profissionais da
psiquiatria e da psicologia, pelo fato de reverenciarmos tanto a mente, temos a impressão de que suas
doenças devem ser tratadas com técnicas ‘profundas’, tais como
psicoterapia, que trabalham diretamente com a mente e suas funções, tais como sentimentos e memórias.
Porém, “drogas afetam a mente, e psicoterapia afeta o cérebro”. Quando técnicas psicológicas são efetivas, é porque levam a mudanças no ‘cérebro plástico’, que aprende novas formas de
resposta e de se adaptar que são traduzidas em mudanças na maneira como a
pessoa sente, pensa e se comporta. A psicoterapia, às vezes relegada
como ‘apenas conversa’, é, de seu jeito próprio, tão ‘biológica’ quanto o
uso de drogas (Brave new brain, Oxford University Press, 2001).
Andreasen não está dizendo que intervenções psicológicas podem fazer
tudo que uma medicação psiquiátrica faz. Mas medicações também não fazem
o que uma terapia eletroconvulsiva faz. E uma terapia eletroconvulsiva
não faz o mesmo que uma psicoterapia. O que a cientista aponta é a
incorreção e ociosidade da separação rígida entre ciências que, todas,
têm efeito na mente/cérebro.
Se essas ciências estão mais integradas hoje do que em qualquer
momento do século passado; se indivíduos podem se beneficiar de
abordagens conjuntas com foco em sua saúde mental, é em grande parte
graças a Henry Molaison. Não é por outro motivo que ele estará para
sempre tanto em nossos livros de psicologia, quanto nos de psiquiatria,
neurobiologia e mesmo filosofia da mente – é possível ter identidade sem
ter memória? Aquele cordato cidadão de Connecticut provaria para o
mundo que tudo o que temos de mais precioso, todas as características
que nos distinguem dos demais seres vivos, está fragilmente contido,
aqui e agora, nas dimensões do nosso crânio, ao mesmo tempo em que pode
maravilhosamente se expandir no tempo desde nossas primeiras lembranças
até o futuro que conseguimos planejar ou imaginar.
Fonte:Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário