quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Maconha medicinal avança no Brasil: Sempre senti que plantar o remédio da minha filha era legítimo

Os últimos meses de 2016 foram históricos para o avanço da chamada maconha medicinal no Brasil.
Entre novembro e dezembro, três famílias conseguiram o salvo conduto para que plantassem a maconha com objetivo de produzir extratos que pudessem ser usados por seus filhos.
Margarete Santos de Brito, mãe e militante que cultiva cannabis para o tratamento da filha, Sofia, de 7 anos, conseguiu a proteção judicial para garantir o cultivo de plantas de maconha em sua própria casa, o que a legislação brasileira ainda não aceita. Marcos Lins, o marido, também não corre nenhum risco de ser acionado judicialmente pelas plantas.
O mesmo aconteceu, no mesmo mês de novembro, com Alexandre Meirelles e Maria de Fátima, pais de Gabriel Meirelles, 14 anos, que sofre com epilepsia e tem tomado doses de CBD, extrato da maconha, nos últimos cinco meses.
O HuffPost Brasil conversou com Margarete e Alexandre para ter uma melhor dimensão do que está começando a acontecer em nosso território nacional.
O salvo conduto, o tradicional habeas corpus preventivo, não permite que as polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro levem Margarete e seu marido Marcos presos nem apreendam o cultivo, mantido para cuidar de Sofia, portadora de CDKL5, doença rara que tem como um de seus sintomas crises convulsivas.
O efeito é semelhante com Alexandre e sua família, que já haviam, em processo anterior, garantido que o estado do Rio de Janeiro passasse a ceder os remédios a Gabriel. A decisão foi favorável a Alexandre, mas o poder público nunca cumpriu o que devia.
"Este ano foi realmente muito bom [para a maconha]. Tem o projeto da Farmacannabis ( campanha colaborativa no Catarse para a compra de equipamentos e material que serão utilizados para verificar as dosagens dos canabinoides), na UFRJ. Temos a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] envolvida com o tema também. E conseguir falar de maconha dentro de um braço do Ministério da Saúde é um passo muito grande. Levei minhas flores [da cannabis] para padronizar dentro da UFRJ, com a supervisão da professora Virgínia Carvalho. E tudo isso é um engajamento da sociedade civil, que está se juntando à Academia", comemorou Margarete, em entrevista ao HuffPost.
A advogada Margarete sabe bem o que está dizendo. Ela é a presidente da Associação de Apoio á Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e está na linha de frente pelo direito ao acesso aos extratos preparados com cannabis há anos. Foi ela também quem protagonizou o documentário Ilegal, quando ela ainda não plantava.
Plantando a cannabis desde março para a extração da solução usada por Sofia, a família de Margarete passou meses desprotegida pela lei. É que, segundo a Lei de Drogas (11.3433/2006), é crime cultivar ou colher “plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. Sim, crime.
Ainda assim, mesmo com a possibilidade de acabar criminalizada, não causou medo nem desconfiança em Margarete: "Sempre senti que plantar o remédio da minha filha era um direito legítimo. Por que vou esconder? É para poder fazer o remédio para a minha família. Quando fui despachar com a promotora, ela me olhou e disse que faria o mesmo que faço. Mas ela quis garantir que não tivesse nenhum problema: 'Vai que um policial desavisado faz algo contra vocês'", conta ela. O salvo conduto acabou assinado pela juíza Lídia Maria Sodré de Moraes, de Botafogo, na zona sul.
Há, claro, barreiras ainda muito retrógradas para tratar do tema. A falta de informação leva a distorções quanto ao uso medicinal da maconha. "São preconceitos. Não só da doença, mas do tratamento. Não só com a epilepsia, mas com a esclerose múltipla. Existem questões de patentes, de laboratório. E imagine que uma planta serve para tudo isso... Então, quero essa patente para mim", critica Alexandre, em fala ao Huff.
"Alguns médicos não querem se capacitar. É uma planta. Perfume é de feito de quê? Alface, chicória, cheiro verde... Por que a maconha não pode não ser um medicamento?", indaga Alexandre. "Se tua mãe e teu pai precisassem da maconha, esse é o caminho que você faria? Tem a planta, tem a terra, por que não pode fazer o medicamento?", completa.
Desde 2014, foram 1.947 solicitações de importação de produtos à base de derivados da maconha enviadas à Anvisa, sendo 1.802 autorizadas. Mas, mesmo com os avanços, o remédio industrializado ainda é proibitivo. "Se importar é R$ 5 mil e demora três a quatro meses para chegar. Burocracia imensa. Precisa ser diferente. Estamos lidando com vidas", critica Alexandre.
Margarete, por sua vez, enxerga maiores aberturas para a planta. "O uso medicinal é muito tranquilo hoje em dia. É só um maluco ou outro que fala bobagem nas redes sociais. O uso medicinal é uma porta de entrada de outros usos. O uso recreativo, religioso, sei lá... Abre porta para debate sem preconceito. Senti muito isso. Estou há três anos nisso. Lá atrás, quando fazíamos os debates, todos ficavam se olhando, mas todo mundo se sensibiliza", conta Margarete.
Para o advogado Emílio Figueiredo, 38, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e que representa diversos clientes com problemas relacionados ao proibicionismo da maconha, a manifestação da Justiça pelas famílias cariocas deve ser considerada histórica. "Tivemos um avanço muito concreto. É a primeira vez que o Judiciário reconhece o uso da maconha medicinal. São pessoas que cultivam para tratar os filhos. Eles não correm o risco de serem criminalizados. É uma decisão inédita."
Ele não acredita em acaso. Para Emílio, o fato de as famílias na capital fluminense estarem unidas para o cultivo e terem se organizado em grupos de autocultivo acabou resultando nas vitórias. "Não é uma coincidência. Tem uma cena muito forte dos cultivadores da cannabis medicinal no Rio. Temos associações que ajudam no apoio a quem precisa também, como a Abracannabis e a Apepi, que a Margarete participa, inclusive."
Mas e a legalização para o chamado uso recreativo? Margarete torce para uma abertura que vá nesse sentido também. "Sou super a favor a legalização do uso recreativo. É tão legítimo quanto o medicinal. Tem gente que fala em priorizar o medicinal, mas não acho. Acho que o recreativo é tão urgente quanto. É tudo questão da guerra às drogas. A quantidade de gente que morre."
A solução é a informação: "É uma decisão política. Talvez no Judiciário a gente consiga. Mas é uma luta por informar. E, através do uso medicinal, é um passo para abrir a informação."

Fonte: HuffPost Brasil

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Comissão Europeia aprova uso de medicamento da Bial para epilepsia em crianças

A Comissão Europeia aprovou a indicação terapêutica de um medicamento da farmacêutica portuguesa BIAL para a epilepsia. O medicamento destina-se a adolescentes e crianças com mais de seis anos.
 Em comunicado enviado esta terça-feira, a BIAL refere que o medicamento para a epilepsia “está agora indicado em todos os países da UE como terapêutica adjuvante em doentes adultos, adolescentes e crianças com mais de seis anos com crises epiléticas parciais, com ou sem generalização secundária”.

A epilepsia é uma das doenças neurológicas mais comuns em todo o mundo, atinge 50 milhões de pessoas, sendo que só na Europa, onde há 6 milhões de portadores, são detetados todos os anos 100 mil novos casos em crianças e adolescentes. Segundo a empresa, esta aprovação tem como base “vários estudos que demonstram a eficácia e segurança deste fármaco, nomeadamente ao nível neurocognitivo (capacidade de concentração, processamento de informação e memória)”.

O acetato de eslicarbazepina representa o primeiro fármaco de patente nacional. Este medicamento para a epilepsia representou “um marco histórico” para a indústria farmacêutica portuguesa quando, em 2009, foi aprovado pela Comissão Europeia. Em 2013, este medicamento foi também aprovado pelo regulador norte-americano, a Food and Drug Administration (FDA). Atualmente, é comercializado em vários países europeus (entre os quais o Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha e França) e nos EUA e Canadá.

Nos últimos anos, em média, BIAL tem canalizado mais de 20% da sua faturação anual (mais de 40 milhões de euros) para I&D centrada nas neurociências, no sistema cardiovascular e imunoterapia alérgica. “A investigação de novas soluções terapêuticas continuará a ser um dos alicerces da expansão internacional do grupo BIAL, atualmente com produtos disponíveis em mais de 55 países”, sublinha a farmacêutica.

Fonte: Observador

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Anny Fischer redescobriu o mundo após três anos de tratamento

O colchão está no piso da sala cercado de travesseiros. Mas eles não representam mais um obstáculo para a pequena Anny Bortoli Fischer, 8 anos. A menina tem ultrapassado limites jamais imaginados pela família. “Esses dias fui buscá-la debaixo do sofá”, relembra a mãe, Katiele Fischer, 35, aos risos. A menina redescobriu o mundo. Sons, o volume da voz e sorrisos. Uma infância tardia que voltou a ganhar tons de alegria e tranquilidade após o uso do canabidiol (CBD), uma das substâncias derivadas da maconha. Em novembro, completou três anos desde que Anny tomou a primeira dose e a vida de toda a família começou a mudar.
 A pequena sofre de um problema genético raro. Antes do início do tratamento com o canabidiol, tinha, em média, 60 convulsões por semana. As crises eram provocadas por um tipo de epilepsia grave, causada pela síndrome CDKL5. “Como vou explicar o que sinto quando tenho de acordar meia-noite para pedir que ela diminua o volume dos sons? Como vou explicar o que sinto quando vou acordá-la e ela se espreguiça? Isso é tudo para mim, são as coisas mais lindas”, afirma a mãe. Encontrar palavras para descrever detalhes tão comuns e simplórios parece besteira, mas enchem de lágrimas os olhos de Katiele e do pai, Norberto Fischer, 47. Aos poucos, a filha mais nova do casal tem desvendado um universo próprio. As convulsões saíram de cena. No lugar, entraram as gargalhadas repentinas, as birras para escovar os dentes e, principalmente, os olhares atentos e curiosos. “Não sabemos o que ela entende, mas que ela entende o que falamos é certo. Tem reações”, comenta a mãe.
Para quem viu Anny há dois anos ou mais, é inevitável se surpreender. Mesmo cansada depois da fisioterapia, quando os pais abrem a porta do carro e começam as brincadeiras, ela esbanja sorrisos. Como as crianças na idade dela, faltam alguns dentes no riso da menina, mas sobra espontaneidade. No colchão no piso da sala, como uma bailarina, joga as pernas de um lado para o outro e, quando ninguém está olhando, levanta o tronco sozinha. “Sem vergonha você, Anny. Na hora da foto você não faz isso”, brinca Katiele. A boneca de pano, como pais e avós costumavam descrevê-la por conta da falta de movimentos próprios, ganhou vida e cresceu. “As minhas costas que o digam”, complementa a mãe.
 Com convulsões esporádicas e menos intensas, o clima na casa dos Fischer é outro. As preocupações e os medos ainda existem, mas já não guiam a vida da família. Uma atmosfera de descontração e felicidade contagia quem entra pelo portão branco da residência no Setor Habitacional Taquari. Dias de sol ou chuva são sempre uma oportunidade de festa e bagunça, e Anny adora uma folia. Deitada na rede, na varanda de casa, ela vibra com os respingos da água. “Dentro dos limites impostos pela síndrome, ela está muito bem”, avalia Katiele. “Está mais presente no mundo e percebendo o mundo.”
 Diante da melhora da pequena Anny, nem as fronteiras geográficas são impensáveis. Em outubro, a família viajou aos Estados Unidos para conhecer o casal que tornou as mudanças viáveis: Penny e Dustin Howard. Eles são os pais de Harper, uma menina de 5 anos que tinha a mesma síndrome de Anny. Foi por uma publicação de Dustin nas redes sociais que Katiele descobriu o CBD e seus benefícios. Infelizmente, a criança americana morreu em janeiro deste ano nos braços dos pais com uma infecção respiratória. “O encontro foi emocionante. Não conseguia parar de chorar”, relembra Katiele. Os assuntos, as experiências, os questionamentos e as alegrias daquelas duas famílias, mesmo distantes fisicamente, eram similares. Para o jornal norte-americano Dallas News, que registrou o momento, era como se a casa dos Howards estivesse em festa como na véspera da noite de Natal.
 
 
 
 
 
 Fonte: Correio Braziliense

 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Epilepsia na infância: a importância e o poder da informação

Entender a doença é compreender que o paciente pode ter uma vida normal
Que a falta de informação pode ser considerada o primeiro passo em direção ao preconceito, muitas pessoas já sabem. Porém, além de se informar melhor sobre os mais diversos assuntos, o que mais poderia ser feito? Uma boa alternativa é: encarar o outro de igual para igual, entendendo que cada indivíduo tem suas peculiaridades.
Essa postura também vale com relação a doenças que provocam diferentes manifestações e podem causar estranhamento. As crianças, por exemplo, nem sempre sabem como agir a situações distintas das que estão acostumadas a vivenciar, o que pode gerar, num primeiro momento, afastamento e medo. Um exemplo que se encaixa nesse cenário é o convívio com a epilepsia, doença muito comum na infância. Discutir essas questões pode ser uma importante ferramenta para facilitar a vida social do paciente nessa fase da vida e fortalecer sua segurança.
Com incidência de cerca de 50 milhões de pessoas no mundo e 3 milhões de brasileiros, conforme a Liga Brasileira de Epilepsia (LBE), a doença é caracterizada por descargas elétricas anormais e excessivas no cérebro, que são recorrentes e geram as crises epilépticas. O problema pode ser entendido como uma alteração temporária e reversível do funcionamento do cérebro, que não tenha sido desencadeada por febre, drogas ou distúrbios metabólicos e, muitas vezes, não tem a causa identificada. Os episódios podem durar de segundos a minutos, no momento em que o cérebro emite os sinais incorretos.
As crises e a antecipação delas causam grande angústia na vida de pais e crianças com epilepsia, o que prova que quanto maior for o conhecimento sobre o assunto, maior a segurança dos pacientes e pessoas que estão por perto. Segundo a Dra. Maria Luiza Manreza, doutora em Neurologia pela USP, “entender a epilepsia é também compreender que quem tem a doença na grande maioria das vezes pode viver uma vida normal. Mesmo porque, com o avanço da medicina, atualmente 70% dos episódios são controlados por meio de medicamentos”.
Quando as crises não são devidamente controladas, podem causar impacto negativo na rotina e vida social da criança, impedindo o seu desenvolvimento de maneira saudável. Além disso, a falta de um diagnóstico precoce e tratamento adequado podem agravar a situação como um todo. “Não há uma causa certa para a epilepsia, porém, no início da vida, a mais comum é a origem genética. Além dela, são consideradas também lesões cerebrais que podem ocorrer durante o nascimento ou doenças como a encefalite, meningite ou sarampo”, pontua a Dra. Maria Luiza.
A compreensão dos pais, além da busca pelo auxílio médico, é determinante para o futuro do filho, pois influencia diretamente na imagem que ele desenvolve de si mesmo e de sua doença. A criança deve crescer em um ambiente de aceitação e amor, que contribua com seu autoconhecimento e autoestima, promovendo um bom convívio com a epilepsia.

Fonte: Segs

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Projetos na UFRJ e Fiocruz devem levar ao desenvolvimento de medicamento á base de maconha

O verde da maconha em breve pode ganhar tons amarelos, reproduzindo as cores nacionais do Brasil. Cada vez mais utilizados como tratamento alternativo para diversas condições de saúde, dos enjoos provocados pela quimioterapia contra o câncer a convulsões incontroláveis por remédios convencionais em crianças, compostos da planta, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), são alvo de projetos de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que devem levar ao desenvolvimento do primeiro fitomedicamento à base de maconha no país. Com isso, o uso das substâncias ganhará rigor científico e padronização ainda inéditos no mundo, guiando sua aplicação terapêutica.
— A situação que temos hoje é complicada — justifica Virgínia Martins Carvalho, professora de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRJ. — A maconha e substâncias nela contidas têm propriedades terapêuticas reconhecidas internacionalmente, e disso não há dúvidas, mas ainda há uma confusão muito grande para seu estudo, principalmente por conta da proibição, que dificulta bastante as pesquisas.
Diante disso, Virgínia apresentou e teve aprovado em novembro um projeto de extensão na instituição, intitulado Farmacannabis, cujo objetivo principal é analisar a composição dos extratos de maconha importados ou produzidos artesanalmente, e clandestinamente, no Brasil com fins medicinais. No caso dos extratos importados, embora após muitos protestos e ações na Justiça a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha autorizado em caráter excepcional sua entrada no país para o tratamento de crianças que sofrem com a chamada epilepsia refratária, em que os remédios comuns não foram capazes de controlar as convulsões, até recentemente estes produtos eram comercializados como suplementos alimentares nos EUA, e por isso sua fabricação não precisa obedecer a padrões estritos como os de medicamentos.

 Projeto orçado em R$ 250 mil

O problema é tamanho que avaliações feitas pela Administração para Alimentos e Drogas (FDA, o órgão fiscalizador do setor no país) de alguns dos extratos mais vendidos nos EUA, entre 2015 e 2016, verificou que quase nenhum deles continha as proporções de CBD e/ou THC indicadas em seus rótulos. Além disso, muitas famílias brasileiras não têm condições de arcar com a compra dos extratos importados — um vidro dos óleos americanos custa por volta de US$ 300 (cerca de R$ 1 mil), e dependendo do peso e sintomas da criança, são utilizados até dois deles por mês —, e acabam plantando maconha e fazendo os compostos em casa, ou obtêm estes de fabricantes artesanais.
— Ninguém sabe de fato qual o grau farmacológico destes extratos, isto é, qual a concentração de CBD e THC neles — conta Virgínia. — Isto dificulta o controle e a eficácia da dosagem, já que, embora o médico possa prescrever e acompanhar o tratamento, ele não tem ideia de exatamente quanto CBD e THC a criança está tomando. Com o Farcannabis, vamos dar suporte analítico tanto para os pacientes e suas famílias quanto para os médicos, além de proporcionar aos estudantes experiência em análises toxicológicas e interação clínica pelo contato com pacientes e médicos.
Ainda de acordo com Virgínia, até o fim do projeto, inicialmente orçado em quase R$ 250 mil, também deverá estar em funcionamento uma plataforma digital de acesso gratuito na qual, mediante inscrição ou cadastro, médicos, familiares e alunos poderão obter mais informações sobre os possíveis usos medicinais da maconha, os resultados das análises feitas durante a iniciativa e como elas foram realizadas.
— A maconha tem cerca de 70 canabinoides e seus ácidos, cada um deles com suas propriedades e efeitos — destaca Virgínia. — Falar do canabidiol como se não estivéssemos nos referindo à planta procura dar uma ideia de afastamento da maconha, o que é uma falácia. Nenhum destes canabinoides existe isolado, e precisamos saber como eles atuam entre si, em particular o THC e o CBD. Eles têm uma ação dinâmica no sistema nervoso central, num efeito que chamamos de “comitiva”, que é variável de pessoa a pessoa. E é por isso que conhecer suas proporções nos extratos é muito importante. Sabemos que estes extratos ajudam, mas ainda precisamos saber como dentro de um planejamento terapêutico segundo sua composição e dosagem, isto é, porque algumas pessoas se beneficiam mais de extratos que tenham mais THC e outras de extratos com mais CBD. E para isso temos que estudá-los. Só com este monitoramento e os relatos clínicos poderemos conhecer melhor esta associação.
Esta investigação também será fundamental para o projeto na Fiocruz. Lançado em março deste ano com a criação de um grupo de trabalho do qual a própria Virgínia faz parte, o Fio-cannabis discute a viabilidade e formatação de uma ampla e longa pesquisa científica com intuito de, provada sua eficácia e segurança, eventualmente fabricar um fitomedicamento de Cannabis para alívio da epilepsia refratária.
— A ideia é estudar os extratos tanto do ponto de vista de toxicidade quanto de segurança, além de fazer ensaios pré-clínicos e clínicos das fases 1, 2 e 3 para avaliar sua eficácia, isto é, seguir todo o processo necessário para o registro de um medicamento no Brasil junto à Anvisa com foco na epilepsia refratária — diz Hayne Felipe da Silva, diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), que encabeça a iniciativa.
Com uma tríade de segurança, eficácia e qualidade igual à de qualquer outro medicamento, o pesquisador pretende chegar a um produto feito no Brasil com custo menor e que possa vir a ser distribuído pelo SUS (Sistema Único de Saúde, do governo federal), além de dar a ele o rigor de medicamento que não há nos EUA.
De acordo com Silva, a expectativa é de que até o fim deste ano o projeto de pesquisa definindo, entre outros fatores, como ela será feita, quantos voluntários serão necessários etc, já esteja pronto para ser encaminhado à Anvisa, com os estudos começando na prática já no ano que vem. Ao todo, ele espera que o processo de desenvolvimento do fitomedicamento leve de cinco a dez anos.
— Temos que começar logo, ainda mais por se tratar de substâncias que têm ação no sistema nervoso central, um complicador adicional.
Silva conta, no entanto, que um dos principais obstáculos que ainda faltam ser superados para dar início efetivo à pesquisa é justamente encontrar um fornecedor regular dos extratos de Cannabis, seja do Brasil ou do exterior, com a qualidade e padrão de composição necessários para uma investigação científica do tipo. O que é certo, porém, é que a Farmanguinhos não vai plantar maconha e produzir os compostos.
— A Farmanguinhos é uma indústria de transformação, então vamos fazer com este produto o que fazemos com os outros medicamentos: compramos o princípio ativo e formulamos o remédio.

 Mudança de patamar dos medicamentos

Na outra ponta deste esforço de duas das maiores instituições de pesquisa do Brasil estão pessoas como Sofia. A menina, portadora de CDKL5, doença rara que tem como um de seus sintomas crises convulsivas, é filha da advogada Margarete Santos de Brito, presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), e uma das crianças que estão se beneficiando da autorização da Anvisa para importação dos extratos de Cannabis. Segundo Margarete, atualmente Sofia toma um misto de extratos de Cannabis importados e artesanais, além de outros remédios e tratamentos convencionais para sua condição, que ela estima terem reduzido em 70% seus ataques epiléticos.
— Para a gente, estas pesquisas mudam completamente o patamar dos fitomedicamentos de Cannabis no Brasil — avalia. — Como os extratos importados também vão ser testados, teremos um controle de qualidade que não é realizado nem nos EUA, já que as informações em seus rótulos não necessariamente corresponde à realidade.
E a preocupação de Margarete vem de experiência própria. Ela conta que recentemente adquiriu um extrato americano que dizia ser livre de THC, o canabinoide de efeito euforizante da maconha e um dos mais presentes na planta. Antes de dá-lo a Sofia, porém, ela decidiu prová-lo e acabou tendo uma “onda”, o que a fez decidir não administrá-lo à menina.
— Estes extratos entram no Brasil a preço de ouro, são extremamente caros e não têm necessariamente qualidade — reclama. — Já os produzidos artesanalmente aqui podem ser tão ou mais eficientes do que os que vêm dos EUA, mas com eles também não sabemos quais os percentuais de canabinoides que estamos dando para as crianças. Mas, com estas pesquisas, vamos saber.
Para Margarete, também é relevante o fato de os estudos estarem nas mãos de duas renomadas instituições de pesquisa no país.
— Isto serve como um aval de que a maconha pode ser sim um remédio — destaca. — E por mais que este processo de investigação possa demorar, ter um fitomedicamento de Cannabis verde-e-amarelo, ou na verdade mais verde que amarelo, será uma realização muito importante.
Enquanto isso, contudo, Margarete procura garantir a continuidade do tratamento da filha. Na última semana de novembro, a advogada obteve na Justiça um habeas corpus preventivo que proíbe as polícias Civil e Militar do Rio de detê-la e/ou apreender as plantas de maconha que cultiva em casa para produzir os extratos de Cannabis artesanais que dá a Sofia. O salvo-conduto é válido até que seja julgado em definitivo processo que ela move na 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro em que pleiteia permissão para cultivar a planta ilícita com fins medicinais.

Fonte: Extra