Os últimos meses de 2016 foram históricos para o avanço da chamada maconha medicinal no Brasil.
Entre
novembro e dezembro, três famílias conseguiram o salvo conduto para que
plantassem a maconha com objetivo de produzir extratos que pudessem ser
usados por seus filhos.
Margarete Santos de Brito, mãe e
militante que cultiva cannabis para o tratamento da filha, Sofia, de 7
anos, conseguiu a proteção judicial para garantir o cultivo de plantas de maconha em sua própria casa,
o que a legislação brasileira ainda não aceita. Marcos Lins, o marido,
também não corre nenhum risco de ser acionado judicialmente pelas
plantas.
O mesmo aconteceu, no mesmo mês de novembro, com
Alexandre Meirelles e Maria de Fátima, pais de Gabriel Meirelles, 14
anos, que sofre com epilepsia e tem tomado doses de CBD, extrato da maconha, nos últimos cinco meses.
O
HuffPost Brasil conversou com Margarete e Alexandre para ter uma melhor
dimensão do que está começando a acontecer em nosso território
nacional.
O salvo conduto, o tradicional habeas corpus
preventivo, não permite que as polícias Civil e Militar do Rio de
Janeiro levem Margarete e seu marido Marcos presos nem apreendam o
cultivo, mantido para cuidar de Sofia, portadora de CDKL5, doença rara que tem como um de seus sintomas crises convulsivas.
O
efeito é semelhante com Alexandre e sua família, que já haviam, em
processo anterior, garantido que o estado do Rio de Janeiro passasse a
ceder os remédios a Gabriel. A decisão foi favorável a Alexandre, mas o poder público nunca cumpriu o que devia.
"Este ano foi realmente muito bom [para a maconha]. Tem o projeto da Farmacannabis ( campanha colaborativa no Catarse para a compra de equipamentos e material que serão utilizados para
verificar as dosagens dos canabinoides), na UFRJ. Temos a Fiocruz
[Fundação Oswaldo Cruz] envolvida com o tema também. E conseguir falar de maconha dentro de um braço do Ministério da Saúde é um passo muito grande.
Levei minhas flores [da cannabis] para padronizar dentro da UFRJ, com a
supervisão da professora Virgínia Carvalho. E tudo isso é um
engajamento da sociedade civil, que está se juntando à Academia",
comemorou Margarete, em entrevista ao HuffPost.
A advogada Margarete sabe bem o que está dizendo. Ela é a presidente da Associação de Apoio á Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e está na linha de frente pelo direito ao acesso aos extratos preparados com cannabis há anos. Foi ela também quem protagonizou o documentário Ilegal, quando ela ainda não plantava.
Plantando
a cannabis desde março para a extração da solução usada por Sofia, a
família de Margarete passou meses desprotegida pela lei. É que, segundo a
Lei de Drogas (11.3433/2006), é crime cultivar ou colher
“plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou
produto capaz de causar dependência física ou psíquica”. Sim, crime.
Ainda
assim, mesmo com a possibilidade de acabar criminalizada, não causou
medo nem desconfiança em Margarete: "Sempre senti que plantar o remédio
da minha filha era um direito legítimo. Por que vou esconder? É para
poder fazer o remédio para a minha família. Quando fui despachar com a promotora, ela me olhou e disse que faria o mesmo que faço.
Mas ela quis garantir que não tivesse nenhum problema: 'Vai que um
policial desavisado faz algo contra vocês'", conta ela. O salvo conduto
acabou assinado pela juíza Lídia Maria Sodré de Moraes, de Botafogo, na
zona sul.
Há, claro, barreiras ainda muito retrógradas para tratar
do tema. A falta de informação leva a distorções quanto ao uso
medicinal da maconha. "São preconceitos. Não só da doença, mas do
tratamento. Não só com a epilepsia, mas com a esclerose múltipla.
Existem questões de patentes, de laboratório. E imagine que uma planta
serve para tudo isso... Então, quero essa patente para mim", critica
Alexandre, em fala ao Huff.
"Alguns médicos não querem se
capacitar. É uma planta. Perfume é de feito de quê? Alface, chicória,
cheiro verde... Por que a maconha não pode não ser um medicamento?",
indaga Alexandre. "Se tua mãe e teu pai precisassem da maconha, esse é o
caminho que você faria? Tem a planta, tem a terra, por que não pode
fazer o medicamento?", completa.
Desde 2014, foram 1.947
solicitações de importação de produtos à base de derivados da maconha
enviadas à Anvisa, sendo 1.802 autorizadas. Mas, mesmo com os avanços, o
remédio industrializado ainda é proibitivo. "Se importar é R$ 5 mil e
demora três a quatro meses para chegar. Burocracia imensa. Precisa ser
diferente. Estamos lidando com vidas", critica Alexandre.
Margarete,
por sua vez, enxerga maiores aberturas para a planta. "O uso medicinal é
muito tranquilo hoje em dia. É só um maluco ou outro que fala bobagem
nas redes sociais. O uso medicinal é uma porta de entrada de outros
usos. O uso recreativo, religioso, sei lá... Abre porta para debate sem
preconceito. Senti muito isso. Estou há três anos nisso. Lá atrás,
quando fazíamos os debates, todos ficavam se olhando, mas todo mundo se
sensibiliza", conta Margarete.
Para o advogado Emílio Figueiredo, 38, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e que representa diversos clientes com problemas relacionados ao proibicionismo da maconha, a manifestação da Justiça pelas famílias cariocas deve ser considerada histórica. "Tivemos um avanço muito concreto. É a primeira vez que o Judiciário reconhece o uso da maconha medicinal. São pessoas que cultivam para tratar os filhos. Eles não correm o risco de serem criminalizados. É uma decisão inédita."
Para o advogado Emílio Figueiredo, 38, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e que representa diversos clientes com problemas relacionados ao proibicionismo da maconha, a manifestação da Justiça pelas famílias cariocas deve ser considerada histórica. "Tivemos um avanço muito concreto. É a primeira vez que o Judiciário reconhece o uso da maconha medicinal. São pessoas que cultivam para tratar os filhos. Eles não correm o risco de serem criminalizados. É uma decisão inédita."
Ele
não acredita em acaso. Para Emílio, o fato de as famílias na capital
fluminense estarem unidas para o cultivo e terem se organizado em grupos
de autocultivo acabou resultando nas vitórias. "Não é uma coincidência.
Tem uma cena muito forte dos cultivadores da cannabis medicinal no Rio.
Temos associações que ajudam no apoio a quem precisa também, como a
Abracannabis e a Apepi, que a Margarete participa, inclusive."
Mas
e a legalização para o chamado uso recreativo? Margarete torce para uma
abertura que vá nesse sentido também. "Sou super a favor a legalização
do uso recreativo. É tão legítimo quanto o medicinal. Tem gente que fala
em priorizar o medicinal, mas não acho. Acho que o recreativo é tão
urgente quanto. É tudo questão da guerra às drogas. A quantidade de
gente que morre."
A solução é a informação: "É uma decisão
política. Talvez no Judiciário a gente consiga. Mas é uma luta por
informar. E, através do uso medicinal, é um passo para abrir a
informação."
Fonte: HuffPost Brasil